Um clube com gente dentro: a história de Maria Fernanda Oliveira
"Nenhum dia é igual. Chegamos de manhã e podemos pensar que vem aí um dia que vai correr bem, mas passamos a porta e acontece sempre qualquer coisa".

Maria Fernanda Oliveira sabe falar “daqueles tempos” em que os contratos eram feitos “em folha de papel azul e com químicos” e de receber por telex a lista de castigos à sexta-feira. Sabe porque estava lá: nos corredores, nas salas, nas reuniões. Respondeu a um anúncio para telefonista do Vitória Sport Clube há 35 anos. “Acho que vinha calma porque não sabia para o que vinha”, pontua a vimaranense que “não tinha nada a ver com futebol” antes de concorrer àquela vaga.
Entra no clube em plena era Pimenta Machado. Em 1987, foi “uma novidade”: era a única mulher no meio de centenas. “Acarinhada” desde início, desmultiplicou-se em funções: desde serviço de secretaria à pasta do departamento de futebol, sem esquecer o tempo em que não havia departamento de compras e chegou a escolher os equipamentos. Agora, trabalha no gabinete de apoio à presidência. São milhares de dias “sem monotonias”. “Nós não temos disso, nenhum dia é igual. Chegamos de manhã e podemos pensar que vem aí um dia que vai correr bem, mas passamos a porta e acontece sempre qualquer coisa”, refere a funcionária com 54 anos.
Tem saudades do tempo em que “era tudo mais familiar”. “Éramos meia dúzia de funcionários”, recorda. Passou por três sedes do Vitória: a do centro histórico de Guimarães, na Rua D. João I – foi aí que começou a trabalhar e passa lá cinco anos –, no complexo desportivo e agora no estádio. Lembra “aqueles tempos” em que quando o roupeiro estava doente, todos davam “uma mão”. Isto vai há 20 anos, altura em que – e Fernanda Oliveira recorda entre risos –, para celebrar contratos, os craques que jogaram de rei ao peito tinham de fazer a viagem ao notário no Fiat Uno da funcionária. “Muitas vezes nesses momentos só estava eu, o presidente não entrava nesse protocolo. Os jogadores assinavam o contrato e era exigido que o documento fosse reconhecido presencialmente”. Era aí que entrava o clássico carro italiano. “Eles podiam ser vedetas, mas todos eles iam ao notário no meu Uno”.
O BMW preto de Jorge Mendes
Um dos que andou no modesto compacto de Fernanda foi Nuno Espírito Santo. São 35 anos, muitas centenas de jogadores, mas alguns puxam memórias. A do antigo guarda-redes do Vitória traz atrelada a dos dias em que Pimenta Machado deixava Jorge Mendes – que, para além de Nuno agenciou jogadores como Duda, Carlos e Vítor Lima – dias inteiros à espera para ser atendido. “O Jorge Mendes inicia a carreira de empresário em Guimarães. Tenho imagens dele a passar dias sob um sol abrasador, dentro de um BMW preto, à espera que Pimenta Machado o recebesse”, recorda.
Metade do percurso trilhado no Vitória SC foi sob alçada de Pimenta Machado, pessoa de “personalidade vincada”. “Foi quem mais me fez crescer no futebol, fez-me ver o bom e o mau. É uma pessoa controversa, mas que tem o lugar dele e ninguém o tira, tanto na história do Vitória como do futebol. Foram 17 anos. Nas funções que desempenhou, já escreveu entrevistas para presidentes – com Pimenta Machado nunca foi preciso: era “autónomo” – e até prefácios de livros. Acredita que todos os presidentes deram o melhor pelo Vitória SC enquanto o serviram. Conheceu seis enquanto desempenhou funções, mas chegou a conviver com mais: teve uma relação próxima com Gil Mesquita e destaca a clarividência de Fernando Roriz.
A morte de Neno, um “irmão”, e Albino Freitas, “um faz tudo cuja vida se confundia com o Vitória SC” tiveram impacto. A “família” que Fernanda fala durante a conversa com o Jornal de Guimarães perde dois elementos fundamentais. Fica a saudade da “risada logo de manhã” do antigo guarda-redes que clareava logo tudo e do “incansável” Bininho.
Pessoa de “trato fácil”, Maria Fernanda Oliveira não crê ter ganhado inimigos no Vitória SC. Já a desafiaram a escrever um livro sobre as histórias “cabeludas” dos bastidores do clube. Recusou. Há segredos que ficam melhor em família.