O Neno morreu!
Mais uma vez fomos surpreendidos, e ficamos admirados, como se fossemos autómatos ou os comandos da nossa existência estivessem colocados nas nossas mãos.

Este nosso existir autossuficiente aliena-nos da real existência de cada um de nós, os de carne e osso, mas habitados pelo espírito, traçando na nossa peugada a alma que suspira pelo amor e se realiza no encontro com o(s) outro(s). Esses são os que se encerraram em torres de marfim autorreferenciadas nas mesquinhezes dos seus interesses, e que não entendem que lá do alto nos olham na pressa que destrói e nos desafia à calma que faz memória. Ou como escreveu Olga Tokarczuk – “Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm, atrasadas, as suas almas perdidas”.
O Neno foi uma alma (uma vida/uma existência em carne e osso) que caminhou sem pressa entre nós, deixando-nos numa imensa saudade do seu sorriso e da sua boa disposição. Um amigo que sabia escutar e, discretamente, surgir na alegria e na tristeza de muitos de nós. Se teve inimigos foram desarmados, sempre, pela sua capacidade de vizinhança e admiração. O Neno pensava pela sua cabeça inclusiva e sonhava com o seu coração de irmão, mesmo divergindo de alguém ou de algo, sabia admirar a humanidade que diante dele se colocava. Acreditava em alguém que presidia à fraternidade do amor, Deus ou outro nome que seja, e sempre gostou de viver cada momento como sendo a eternidade da existência toda. Por isso mesmo não era um ateu, mas un crente credível de que os homens e as mulheres tinham uma missão a cumprir nesta morada onde todos realizamos a nossa existência concreta, superando – não raras vezes – os limites da ridícula suficiência dos egotistas de umbigos inchados. Talvez, como nos ensinou o grande filósofo Leonardo Coimbra, assim possamos descrever por contraste este nosso grande amigo: “O homem que não admira é o único autêntico ateu: topou os limites da sua ridícula suficiência”.
A última lição de vida deste enamorado pela Vida foi o dia da sua morte, gerando uma onda de solidariedade que rompeu todas as fronteiras que entrepomos entre nós. Fronteiras que fomentam ódios e invejas de cores, de culturas, de gostos, de tantas quinquilharias que nos impedem de ver e admirar o vulto daquele(a) que de nós se aproxima. Mesmo quando fazemos a experiência radical da nossa vulnerabilidade, a morte. Termino com o texto de uma das grandes vítimas das fronteiras que na história humana levantamos, Etty Hillesum, e que o nosso grande amigo sempre procurou derrubar. Escreveu: “A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem do papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quanto tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais”.
Sejamos dignos desta herança, “os seus recursos interiores”, e até sempre amigo Neno.