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O negócio do jogo e o jogo como beleza

A hipocrisia atingiu o cume quando uma proposta, simulada, e de facto já realizada, a Super-Liga Europeia, desencadeou um pranto de carpideiras do lucro e do negócio.

13 dezembro 2021 > 00:00

Raquel Veiga, na crónica passada, escrevia assim: “A comercialização e mercantilização excessiva deste produto que é o futebol e que promove o enriquecimento dos mais ricos à custa dos mais pobres – são os clubes ricos que enriquecem e crescem à custa de enfraquecer e empobrecer os clubes de menor dimensão e são os milionários que mandam no futebol que querem transformar a modalidade das massas na modalidade das elites – e que vê os adeptos como meros consumidores está a esvaziar as bancadas de vida e de adeptos”. Parece mais do que certeira esta conclusão, pois o negócio mercantiliza atletas, a preços exorbitantes, e despreza o aficionado como mero consumidor de um produto. Perde o jogo e o desporto, e ganha o mercado em que se transformam as arenas desportivas. Produzir é o paradigma dos tempos humanos em que vivemos – o que produz vale, o que não produz não tem valor. Como Oscar Wilde escreveu: “Hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de nada”. Abate-se um manto de esquecimento sobre a humanidade, onde o Belo e o Bem cedem lugar ao útil e ao lucro, vitimizando o jogo/desporto como negócio que impede o encontro dos que competem e dos assistem. Bem reflete Byung-Chul Han, em Entretenimento e Paixão na História do Ocidente, quando no prefácio da segunda edição alemã escreveu: “A história do Ocidente é uma história da paixão. O novo nome que designa a paixão é «rendimento». A paixão torna a aparecer como desmancha-prazeres. O trabalho e o jogo, com efeito, excluem-se mutuamente. Mas hoje o próprio jogo se submete à produção. A produção trona-se lúdica. // (...). Os jogadores chegam até a dopar-se para poderem render mais. (...). Se um dia vier a ser realmente superado o tempo da paixão, então já não haverá somente um bom entretenimento, mas também um entretenimento belo – quer dizer, um entretenimento graças à beleza. E, mais ainda, tornará a existir o JOGO”.

A hipocrisia atingiu o cume quando uma proposta, simulada, e de facto já realizada, a Super-Liga Europeia, desencadeou um pranto de carpideiras do lucro e do negócio. Foi ridículo ver a posição dos ditos grandes clubes europeus, como virgens ofendidas rasgavam as suas vestes de interesses mesquinhos, de quintal, procurando por trás do palco a fatia maior do bolo, e em pleno palco mediático de peito aberto às balas demostravam a sua preocupação com o rumo do desporto. Mas nós sabemos que só o negócio lhes interessa. A minha crónica anterior pretendia ser um desafio ao regresso ao espiritual (no seu sentido mais lato possível), para que a fruição do jogo/desporto se toram-se um gratuidade fraterna, onde a competição e o resultado fossem uma exigência de crescermos em humanidade solidária e universal, e não uma empresa colocada em bolsa onde o único resultado que procura é o lucro. Como reza o ditado africano: Se queres andar depressa, caminha sozinho. Se queres chegar longe, caminha com os outros. Isto é o que os clubes ricos (ditos grandes), entre os quais se encontram os anões grandes de Portugal (que provocam a desigualdade no desporto nacional e que hipocritamente também denunciaram a Super-Liga Europeia), têm de aprender num salutar relacionamento e razoável esclarecimento na relação com todos os agentes do desporto europeu e nacional.  Razão teve o sábio Papa Bento XVI quando em Madrid em 2001 afirmou: “Sabemos que quando só a utilidade e o pragmatismo se erigem em critério principal, as perdas podem ser dramáticas”. Parafraseando Nietzsche, o jogo/desporto (a arte) existe para que a realidade não nos mate. Ou será que voltaremos às arenas romanas e ouviremos os atletas gritar como os gladiadores – morituri te salutant (aqueles que vão morrer te saúdam).

“Pouco se pode esperar de alguém que só se esforça quando tem a certeza de vir a ser recompensado”, disse Ortega y Gasset. Um jogo/desporto resultadista, no campo para o ser na bolsa, mata a beleza lúdica e humanizadora do jogo, a capacidade de brincar comigo e com os outros, e de o tornar momento honorável para a comunidade que o jogo/desporto promove e o indivíduo que o realiza o agradeça. Mas como sempre, o mais difícil de ver é o óbvio (Oscar Wilde), e acompanhados pela cegueira do lucro e da produção, vamos expulsando os adeptos do jogo/desporto e sobretudo vamos transformando os atletas em máquinas de produção. Mas para isso temos de acompanhar o dito de Saramago – “Se  podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E quem repara, quem se demora a contemplar, no frenesim do corre-corre em que vivemos tudo o que tocamos e experienciamos nos sentidos e no pensamento?! Anda muita gente distraída, dispersa em contar e não em encontrar-se consigo e com os outros, que se tornam incapazes da agudeza crítica que a humanidade desperta necessita para perceber como o engodo vai castigando o jogo/desporto e menoriza a mesma humanidade como elemento ativo do mesmo. Não nos deixemos perder nestes novos meandros em que alguns traçam para o jogo/desporto, não permitamos que se transforme num mero negócio onde ganham os de sempre e manietam os outros (clubes e adeptos), mas como nos pediu São Pedro: “Como crianças recém nascidas desejai” (1 Pe 2, 2).

Despeço-me até à próxima com as palavras do maior filósofo de Portugal – Leonardo Coimbra: “O homem não é uma inutilidade num mundo feito mas obreiro de um mundo a fazer”.

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