O jogo/desporto à medida do ser humano como um todo
Ganhar exige a predisposição para perder. E isto num desporto que promova a dignidade igual do praticante e não se torne jamais gerador de desigualdades insanáveis.

O ser humano é uma realidade una e única, como espécie e como indivíduo, e o jogo/desporto, como dimensão fundamental do se fazer humanidade, atinge o ser humano como um todo. O homem e a mulher integral. A dimensão religiosa e espiritual é componente fundamental desde sempre do ser humanidade, e o jogo/desporto não é exceção, como o confirma a história do mesmo na prática do jogo como ato honorífico para a(s) divindade(s) e como culto devido à cidade e aos seus padroeiros divinos.
Em rigor, um reequilibrar a vida num desenvolvimento harmonioso da pessoa, como uma ginástica do corpo e do espírito (João Paulo II) no desenvolvimento global da pessoa e fator indispensável para a construção de uma sociedade mais à medida do ser humano. Ou, como lembrou em 2018 (Carta Pastoral – Desporto, escola e missão de humanidade) o Arcebispo, Jorge Ortiga, que “o desporto aconteça como verdadeira escola de quem aprende e de quem ensina. (…) como uma verdadeira escola de humanidade onde os valores não passam de moda, mas são antes inculcados permanentemente. Com o desporto pode-se e deve-se chegar a uma humanidade que, na esteira dos princípios de uma cultura secular, não atraiçoe os princípios de nobreza e dignidade”.
Assim, um jogo/desporto reduzido à competição e às rivalidades, às aptidões físicas do atleta e dos lugares e tempos da prática desportiva, ou às estruturas e negócios que sustentam os interesses mesquinhos de quem só vê cifrões à sua frente, depauperam esta ancestral realidade do ser humano, como desumaniza a pessoa como indivíduo e como comunidade. Precisamos de um jogo/desporto para todos, para o homem e a mulher toda, sem olvidar nenhuma das dimensões constitutivas da pessoa em humanização e não somente em hominização. Aqui podemos concluir, na linha de Pierre Coubertin, que o mais importante não é vencer, mas participar (frase famosa do sermão do pastor anglicano Ethelbert Talbot).
Ganhar exige a predisposição para perder. E isto num desporto que promova a dignidade igual do praticante e não se torne jamais gerador de desigualdades insanáveis. Um desporto que seja fiel à expressão francesa deport, isto é, sem porte ou portagem, ou como usualmente dizemos – na desportiva (graciosamente, gratuito…). Capaz de promover uma sociedade solidária e fraterna, fazedora de pontes e não de muros que segregam e destroem o outro no desencontro e na violência. Um jogo/desporto que promova o bem e a beleza, a arte, e não se reduza a um espetáculo lucrativo. Ou como afirmou João Paulo II na homília do Jubileu dos desportistas (29.X.2000) – “uma ocasião de encontro e de diálogo, para além de toda a barreira”.
Que, igualmente, favoreça o encontro com o outro e o Outro, Deus ou a vivência espiritual e metafísica do ser humano. Em tempos do meio/ordem digital em que nos conectamos mas não nos relacionamos, naquilo que Byung-Chul Han apelida do terror do idêntico – “Os tempos em que o outro existia passaram. O outro como mistério, o outro como sedução, o outro como eros, o outro como desejo, o outro como inferno, o outro como dor estão a desaparecer. Hoje, a negatividade do outro cede lugar à positividade do idêntico”. E, por outro lado, a histeria do saudável – “Hoje, a produção totalizou-se, transformando-se na única forma de vida. A histeria com a saúde é, em última instância, a histeria com a produção. Mas destrói a verdadeira vitalidade. A proliferação do saudável é tão obsceno como a proliferação da obesidade”.
Este comportamento gera o isolamento narcísico da humanidade, autodestrutivo e autoagressivo, tudo reduzido ao rendimento e otimização, à comunicação/informação sem conhecimento nem sabedoria. Uma humanidade ensimesmada e autorreferencial, incapaz de se abrir ao outro e ao Totalmente Outro. O jogo/desporto será o tempo e o lugar para regressar ao encontro e à relação, e isto acontece se for capaz de não permitir que se torne mais um espetáculo que tem como única função entreter e fazer (muito) dinheiro.
Ou como no Jubileu dos Desportistas (28.X.2000) discursava o Papa João Paulo II: “Com efeito, a atividade desportiva manifesta, além das ricas possibilidades físicas do homem, também as suas capacidades intelectuais e espirituais. Não é mera potência física e eficiência muscular. Eis por que o verdadeiro atleta não se deve deixar subjugar pelas duras leis da produção e do consumo, ou por considerações puramente utilitaristas e hedonistas”.