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O futebol está à venda

Com permissão do Catar, a Arábia Saudita comprou um clube de futebol. A venda do Newcastle aconteceu por causa do poder que nós, adeptos, damos ao futebol. Não devemos ser mais responsáveis?

11 outubro 2021 > 00:00

Numa entrevista concedida ao The Guardian na última semana, Francesco Totti revelou-se nostálgico e saudoso do futebol romântico. Longe dos relvados há quatro anos, recordou “um futebol diferente”, “um futebol feito de amor, de afeto pelos adeptos”. Sem fugir do tópico, traçou um paralelismo com a atualidade, quase como se tivesse deixado de jogar há décadas: “hoje é mais um negócio; tu vais para onde podes ganhar mais dinheiro”. Estas palavras não podiam ser mais premonitórias. Quase em simultâneo, a Premier League confirmou a (polémica) venda do Newcastle United FC ao Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita.

Não se trata de um fenómeno novo e exclusivo da era pós-Totti. A ideia de um estado controlar um clube de futebol materializou-se, no futebol europeu, pela primeira vez há mais de dez anos. Em 2008, o Manchester City passou para as mãos do Abu Dhabi United Group; e, em 2012, o Paris Saint-Germain foi comprado pelo Qatar Sports Investments. No continente, estes dois clubes, mais do que quaisquer outros, são sinónimos de dinheiro e de poder. O investimento parece não cessar e a luta pelos troféus não demorou a concretizar-se. Afinal, acontece no futebol aquilo que acontece na sociedade: para quem tem bolsos suficientemente fundos (ou até sem fundo), o sucesso compra-se – não se ganha - e não demora a chegar.

Nas margens do Rio Tyne, os adeptos do Newcastle não têm tido muitas razões para festejar. Os três pontos conquistados nas sete jornadas já disputadas da presente edição da Premier League não dão para mais do que os lugares de despromoção e a situação ilustra o que tem sido a vida do clube. Sem uma queda abrupta como a que atingiu o rival Sunderland, o Newcastle é um clube que parece estar permanentemente em crise, mas sem que a crise seja realmente trágica ao ponto de acordar os adeptos. Fundado em 1892, é um dos clubes históricos de Inglaterra, mas já há muito que deixou para trás os anos de glória. Muitos dos que hoje se sentam nas bancadas do St. James’ Park não chegaram a conhecer um clube que não fosse apático e que não estivesse aquém daquilo que a sua história promete. No entanto, tudo indica que a realidade está prestes a mudar.

O Newcastle é, em teoria e desde há poucos dias, o clube mais rico do mundo em consequência de um negócio que envolveu valores superiores a 360 milhões de euros e que demorou a concretizar-se. Em 2019, o governo saudita conduziu a primeira abordagem, garantiu a aprovação dos adeptos – um estudo que envolveu 3000 apoiantes do clube concluiu que mais de 90% concordava com a venda ao fundo saudita -, mas o negócio foi bloqueado pela Premier League. Correram notícias de que o escalão máximo do futebol inglês estava preocupado com a integridade do governo que estava do outro lado da mesa das negociações, mas rapidamente foi desfeito o mito. Afinal, estava em causa outro negócio de muitos milhões e o poder pertencia a outros atores.

A beIN Sports, propriedade do Catar e, no fundo, de Nasser Al-Khelaifi, presidente do PSG, é responsável por um dos mais importantes contratos de transmissão da Premier League. A rivalidade histórica entre a Arábia Saudita e o Catar fez com que, durante muito tempo, os primeiros pirateassem o sinal do canal desportivo dos segundos e, assim, impedissem os cofres do Catar de engordar. Com efeito, o Catar – através da beIN Sports – decidiu que não concebia que um seu aliado, a Premier League, estabelecesse relações com um seu inimigo, a Arábia Saudita. Portanto, para que umas pontes não se queimassem – nomeadamente a ponte por onde circula o dinheiro do Catar para a Inglaterra –, outras viram a sua construção adiada. Mudanças na conjuntura internacional resultaram numa aproximação dos dois países rivais e, nos últimos meses, os sinais piratas foram derrubados, uma multa avultada foi paga e a beIN voltou a ter autorização para operar na Arábia Saudita. No fim, o Catar permitiu que a Arábia Saudita comprasse o Newcastle. A Premier League fez o que lhe compete quando prefere não tomar decisões: limitou-se a assinar os papeis e a comunicar a boa nova ao mundo.

Finalmente, os adeptos do Newcastle sentiram que podiam sair à rua para festejar. Festejaram a saída de Mike Ashley, o proprietário odiado que assumiu os destinos do clube nos últimos anos; e festejaram a entrada de um dono cujos bolsos não têm fundo. É a ilustração do futebol a que Totti se refere. Poucos são aqueles que sonham com os miúdos da formação que chegam à equipa principal para fazer uma gracinha e ganhar um troféu ou com o clube construído e mantido com o esforço e o suor da comunidade e com uma gestão sustentável. No mundo do futebol – que se limita a refletir a sociedade –, isto não é suficiente. Sonha-se com dinheiro e com o dia em que um desses proprietários dos bolsos sem fundo se vai lembrar do nosso clube. Quando tudo está à venda, poucos são os que querem perseguir o sonho e conquistar o sucesso; basta comprá-los.

Esta estranha forma de estar é particularmente útil a um estado como a Arábia Saudita, um país que parece ter como desígnio nacional o descaso pelos direitos humanos. A compra do Newcastle – tal como a compra do Manchester City e do PSG – é motivada por muitas coisas, menos por futebol. Os sauditas não decidiram comprar o Newcastle por gostarem da história centenária do clube ou porque querem dar troféus à comunidade que há tanto tempo não os tem. Fizeram-no porque querem que o nome do país esteja associado ao futebol em vez de estar associado a Jamal Khashoggi, o jornalista que foi assassinado e desmembrado por agentes do governo saudita no seu consulado em Istambul. Fizeram-no porque querem que o país esteja associado a uma história de sucesso no futebol em vez da crise humanitária do Iémen. Fizeram-no para que a próxima manchete não seja sobre a Arábia Saudita e uma guerra civil, mas sobre a Arábia Saudita e o reforço milionário que vai brilhar no campeonato mais popular do mundo. O sucesso – ou, neste caso e por enquanto, a esperança – conquista admiração e prestígio, mesmo que o catalisador seja questionável.

Talvez para o leitor seja uma troca que faça sentido. É possível que considere que um clube de futebol – tantas vezes o ponto central de uma comunidade – é tão importante que tudo é válido em nome do sucesso. Talvez, como eu, o leitor pense exatamente o contrário. Talvez, como eu, o leitor ainda acredite nos clubes enquanto agremiações populares e instituições socioculturais que podem cair, mas que também podem ganhar – e a beleza reside precisamente em não saber o resultado final e acreditar que tudo é possível. Talvez, como eu, o leitor acredite que os clubes não devem ser peões usados no jogo da geopolítica. Talvez, como eu, o leitor perceba que um clube é um negócio, mas que tem mais propósitos do que o comercial (e do que os resultados). Talvez, como eu, o leitor acredite que os clubes se devem pautar pelo prestígio e não pelo dinheiro; que devem servir a comunidade e devem ter como propósito orgulhar e representar os seus adeptos. Talvez, como eu, o leitor também esteja cansado de dar tanto poder ao futebol para que seja usado para lavar as mãos sujas dos governos ou criminosos. Talvez, como eu, o leitor acredite que não é tarde para assumir a responsabilidade e proteger os clubes enquanto há tempo – e a Bundesliga mostra-nos como blindar os clubes com a regra dos 50+1 e ter um campeonato de qualidade. Ou queremos mesmo que o futebol continue à venda?

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