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O futebol das bancadas vazias

Morreu o Cartão do Adepto, mas a sua implementação deixou a descoberto as ideias da classe política, dos órgãos reguladores e dos clubes: já não há espaço para ser adepto no futebol negócio.

06 dezembro 2021 > 00:00

O Cartão do Adepto vai conhecer o seu fim no primeiro dia de 2022. O projeto-lei que o revoga foi aprovado por unanimidade na Assembleia da República, depois na especialidade e, finalmente, o decreto foi promulgado pelo Presidente da República. Os golos da vitória foram assinados pelos adeptos: os que debateram, os que deixaram as ZCEAP vazias, os que não se vergaram, os que se organizaram e, vale a pena particularizar, os que compõem a Associação Portuguesa de Defesa do Adepto. No entanto, o jogo não acabou e este não é o resultado final. A insistência na implementação do Cartão do Adepto, mesmo depois de o seu certificado de óbito ter sido assinado, é testemunha da desconsideração com que os partidos políticos, a Liga e os próprios clubes tratam os adeptos e atesta – se dúvidas houvesse – que o futebol é regulado pela lei do dinheiro. Não há tempo de intervalo para baixar a guarda: as medidas podem acabar, mas as ideias não morrem e ainda é preciso lutar para que os adeptos – e o futebol! – sejam tratados com dignidade.

O Regulamento das Competições dita que “qualquer jogo oficial de competição nacional deverá respeitar um intervalo entre jogos de 72 horas”. É um tecnicismo próprio de quem não sabe que o jogo seguinte começa logo depois de o anterior acabar e que o futebol não se separa da vida quando as luzes dos estádios se apagam no fim de mais uma jornada. Nos últimos meses foi necessário afirmar repetidamente o óbvio: os adeptos de futebol não se transformam em marginais quando passam o cartão ou o bilhete no torniquete de um recinto desportivo ou quando decidem ver um jogo de futebol num determinado setor do estádio. Com efeito, merecem o tratamento digno que merece qualquer cidadão comum. No entanto, não o têm. São marginalizados e discriminados e são, sobretudo e cada vez mais, manipulados e usados pelos órgãos reguladores e pelos próprios clubes com fins lucrativos.

Foi a lei do dinheiro que instituiu o Cartão do Adepto. Se não fosse, facilmente se entendia em que medida é que pagar 20€ – preço da emissão do cartão – para entrar num estádio com um megafone ou uma bandeira com determinadas dimensões visa a “promoção da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos”. Apesar de a medida ter sido dissecada, é um dos pontos que continua por esclarecer. Foi também a lei do dinheiro que incitou os clubes – que deviam ser a primeira linha de defesa dos seus próprios adeptos da mesma forma que os adeptos são a primeira linha de defesa das instituições que apoiam – a manifestarem-se contra o Cartão do Adepto. Numa fase inicial, a maioria dos clubes profissionais não só não contestou a medida como a implementou com diligência; é importante lembrar que alguns clubes destinavam, no setor visitante do respetivo estádio, lugares apenas para os detentores do afamado documento. Só as cadeiras vazias que constantemente apareciam na transmissão televisiva, lembrete de que havia dinheiro que não estava a entrar nos cofres, despertaram desagrado.

A comercialização e mercantilização excessiva deste produto que é o futebol e que promove o enriquecimento dos mais ricos à custa dos mais pobres – são os clubes ricos que enriquecem e crescem à custa de enfraquecer e empobrecer os clubes de menor dimensão e são os milionários que mandam no futebol que querem transformar a modalidade das massas na modalidade das elites – e que vê os adeptos como meros consumidores está a esvaziar as bancadas de vida e de adeptos. No fundo, é (mais uma vez) o futebol a servir de espelho à sociedade. Não conheço um estudo que possa comprovar a relação de causalidade entre o futebol capitalista e o futebol das bancadas vazias, mas parece tratar-se de uma relação inegável.

Os atropelos à dignidade dos adeptos e ao futebol multiplicam-se sem que os interessados sejam chamados às mesas onde tudo se decide. Os decisores do International Football Association Board só ponderam aumentar o tempo de intervalo de 15 para 25 minutos em nome do entretenimento porque nunca viram um jogo no inverno friorento e chuvoso do Estádio dos Arcos. A Liga só agenda um jogo do Vitória em Alvalade para as 21h15 porque, de todos os que se sentam à sua mesa, ninguém vai fazer uma viagem de quase quatro horas depois do apito final para ouvir o despertador tocar antes das seis horas do dia seguinte. A FIFA só luta pela organização do Mundial a cada dois anos porque não percebe que parte do encanto de uma competição de seleções é precisamente o tempo de espera entre cada edição. A elite do futebol europeu só considera organizar-se numa Superliga porque não sabe que há mais alguma coisa para além do dinheiro e que o mais bonito de tudo é a possibilidade de acontecer o inesperado. Os partidos políticos só aprovaram o Cartão do Adepto – e a Liga só o executou e os clubes só o aplicaram com diligência – porque não sabem que os adeptos vivem o futebol como vivem a vida e percebem que não há uma sociedade democrática com bancadas discriminatórias.

Morreu a medida que queria decidir quem é que ia cometer crimes dentro de um estádio, mas não morreu a ideia que lhe deu origem. Os decisores políticos e os decisores do mundo do futebol vão voltar a desprezar os adeptos: lutar contra os horários indecentes ou o preço exorbitante dos bilhetes não dá votos. Com o futebol negócio a ganhar espaço, prioriza-se o adepto que se senta no sofá, vê pela televisão e promove a celebração de contratos milionários. Está a deixar de haver espaço para os adeptos que ainda insistem em ir ao estádio. A quantidade – de jogos e de dinheiro – está a ser priorizada em detrimento da qualidade: a receita gerada em dez jogos é superior à receita de cinco jogos, mesmo que a qualidade dos ditos jogos seja pior. Agora que o Cartão do Adepto foi revogado, a organização e a capacidade de luta que esvaziou as ZCEAP jornada após jornada não se pode desfazer em pedaços. Para que o futebol seja de todos, tem de ser para todos e tem de ser feito por todos e tem, sobretudo, de servir os adeptos ao invés de se servir deles.

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