O Cartão que divide bancadas e une adversários
Os setores vazios no Estádio D. Afonso Henriques e no Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas e as tarjas de protesto não deixam que ninguém se esqueça da introdução do Cartão do Adepto.

No verão de 2020, enquanto os adeptos estavam em casa a combater a pandemia, impedidos de se deslocarem aos estádios e ainda sem nenhuma ideia de que o regresso iria demorar ainda mais de um ano, a portaria n.º 159/2020 foi publicada em Diário da República. Data de 26 de junho do ano transato, com nove páginas que estão a transformar a forma como os adeptos portugueses vivem o futebol nas bancadas. Trata-se do diploma que “define as normas aplicáveis à requisição, emissão, funcionamento e utilização do cartão de acesso a zona com condições especiais de acesso e permanência de adeptos (ZCEAP), abreviadamente designado «cartão do adepto»”.
No entanto, a cronologia pode começar a ser traçada ainda antes. Em julho de 2019, o parlamento aprovou a proposta de lei do executivo socialista que visava alterar o regime jurídico do combate à violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos. À exceção do Partido Comunista Português (PCP) e do Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), que optaram pela abstenção, todas as forças com assento parlamentar à data votaram a favor. Na lei n.º 113/2019, de 11 de setembro de 2019, já se começava a desenhar o caminho. Pretendeu-se, com esta legislação, agravar todas as sanções previstas na lei e impor medidas concretas de identificação dos adeptos. É neste âmbito que no artigo 3 surgem aqueles que seriam os pontos mais polémicos: a definição de uma zona com condições especiais para adeptos e o respetivo cartão de acesso.
O que é, afinal, o Cartão do Adepto?
De acordo com os documentos conhecidos, o Cartão do Adepto, cuja emissão e gestão estão a cargo da Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), foi criado pelo Governo “com vista à promoção da segurança e do combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos”. Com os propósitos oficiais explanados, convém entender como é que se pretendem pôr estes desígnios em marcha.
No início da época em curso, foram criadas nos estádios as denominadas ZCEAP. São “áreas específicas do recinto desportivo” onde “é permitida a utilização de megafones e outros instrumentos produtores de ruídos (…), bem como de bandeiras, faixas, tarjas e outros acessórios, de dimensão superior a um metro por um metro”. Quem quiser entrar nestas áreas, tem de mostrar o Cartão do Adepto, sujeitando-se a ser identificado.
O processo burocrático para aquisição do documento começa numa plataforma online. É por essa via que deve ser requerido o Cartão do Adepto, mas nem todos os cidadãos o podem fazer: está disponível somente para aqueles que têm idade igual ou superior a 16 anos. O cidadão que o queira fazer tem de disponibilizar cerca de uma dezena de dados, desde o nome completo ao número de identificação fiscal e aos promotores desportivos (até três) que apoia. Com a validade de três anos, o custo inicial é de 20 euros.

A legislação e a realidade: a contestação vimaranense
Para João Lobo, dirigente da Associação Portuguesa de Defesa do Adepto (APDA) e aficionado do Vitória Sport Clube, é fácil identificar o que há de errado com o novo instrumento. Enumera com facilidade os pontos negativos e não hesita em dizer que se trata de “um atentado às liberdades individuais”. Reconhece como válida a luta a que o cartão oficialmente se propõe, mas diz que “não é um cartão que vai alterar a natureza das pessoas” e que, “a nível social", é "tremendamente negativo” por “identificar pessoas que frequentam determinados setores” como “provavelmente prevaricadores de atos violentos”. Para além de tudo isto, diz que o cartão "prejudica diretamente as bancadas pelo excesso de burocracia que acarreta”.
Nélson Mauro, adepto do Moreirense Futebol Clube, não é menos crítico e acredita que isto é só mais um degrau nas restrições impostas aos adeptos do clube de Moreira de Cónegos, limitando as suas formas de expressão nas bancadas. Trata-se, no fundo, de “mais do mesmo” e acrescenta que foi só o “xeque-mate”, depois de já terem sido privados do “direito a colocar as faixas, usar tambores, e apoiar o clube". O cónego acredita que “ser apenas sócio" deve ser suficiente para ver o Moreirense, sem necessidade de registos e identificações.
A luta não se faz só através do boicote. Para João Lobo, “a luta está a ser feita em várias frentes”. Há três cursos de ação principal. No plano legal, destaca-se, por exemplo, a intimação apresentada pela APDA no dia 4 de novembro de 2020 para declarar o documento ilegal. Consideram que o Cartão do Adepto e a legislação que o concretiza “bloqueiam desproporcionalmente direitos, liberdades e garantias fundamentais dos adeptos” de uma forma “flagrantemente inconstitucional”; no início de 2021, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa confirmou a legalidade da legislação. A isto junta-se o trabalho feito junto dos partidos políticos. A Iniciativa Liberal tem sido um dos mais vocais opositores ao Cartão do Adepto e, no início de agosto, apresentou um projeto-lei na Assembleia da República que propõe a sua revogação. Para João Lobo “era importante ter o cartão congelado esta época na via judicial ou na via parlamentar”.
Aliado a tudo isto, e igualmente importante, especialmente para fazer a mensagem chegar ao adepto comum, destacam-se as ações de rua que têm como objetivo conseguir 7500 assinaturas para levar o tema a discussão na Assembleia da República. Antes do arranque do campeonato, o exterior do Estádio D. Afonso Henriques foi preenchido com inúmeros cartazes de contestação. A campanha intensificou-se antes do confronto entre Vitória SC e Portimonense SC. Mais cartazes foram colados nas portas e paredes; e panfletos que remetiam para a petição e para as linhas gerais do Cartão do Adepto foram distribuídos. Em Moreira de Cónegos não foi diferente. Antes do arranque do jogo que opôs Moreirense FC e SL Benfica, os axadrezados exibiram uma tarja onde se podia ler: “Diz não ao cartão do adepto”. Para Nélson Mauro, o caminho passa por “informar as pessoas sobre o tema”, o que se faz também “a espalhar cartazes pela rua”.
Na pequena vila vimaranense, “a recetividade dos adeptos do clube tem sido muito boa” até porque “existem famílias que gostam de acompanhar o clube fora com miúdos na casa dos 15, 16 anos”. Com o Cartão do Adepto, estas zonas ficam bloqueadas a idades inferiores. A implementação da medida no verão, quando ninguém estava presente nas bancadas, fez com que muita gente ainda não se apercebesse das novidades e do respetivo impacto. Para Mauro, a contestação só não é maior porque “existe muita gente que não está devidamente informada”.
Apesar de estarem divididos na cor, os adeptos portugueses têm estado unidos numa luta comum contra uma medida que consideram abusiva e ineficaz. Tanto o vitoriano João Lobo como o cónego Nélson Mauro relevam as próprias ações e valorizam os vizinhos. Para o primeiro, Guimarães deve liderar pelo exemplo por ter muita “representação” no panorama nacional e por despertar sempre muitas atenções. O segundo concorda e diz que “as gentes do Vitória são muito importantes nesta luta” e “uma grande força contra a implementação do Cartão do Adepto”. Olha para os adeptos do Moreirense, clube que apoia, como “uma pequena fatia do bolo” e reconhece que, "só todos juntos", é possível "chegar a algum lado”. No final da primeira jornada de uma maratona de 34, a luta – que se quer conjunta – parece estar só a começar.
