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O Cartão que divide bancadas e une adversários

Os setores vazios no Estádio D. Afonso Henriques e no Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas e as tarjas de protesto não deixam que ninguém se esqueça da introdução do Cartão do Adepto.

16 agosto 2021 > 08:45

No verão de 2020, enquan­to os adeptos estavam em casa a combater a pande­mia, impedidos de se des­locarem aos estádios e ainda sem nenhuma ideia de que o regresso iria demorar ainda mais de um ano, a portaria n.º 159/2020 foi publicada em Diário da República. Data de 26 de junho do ano transato, com nove páginas que estão a transformar a forma como os adeptos portugueses vivem o futebol nas bancadas. Trata­-se do diploma que “define as nor­mas aplicáveis à requisição, emissão, funcionamento e utilização do car­tão de acesso a zona com condições especiais de acesso e permanência de adeptos (ZCEAP), abreviadamen­te designado «cartão do adepto»”.

No entanto, a cronologia pode co­meçar a ser traçada ainda antes. Em julho de 2019, o parlamento apro­vou a proposta de lei do executivo socialista que visava alterar o regi­me jurídico do combate à violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos. À ex­ceção do Partido Comunista Portu­guês (PCP) e do Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), que optaram pela abstenção, todas as forças com as­sento parlamentar à data votaram a favor. Na lei n.º 113/2019, de 11 de setembro de 2019, já se começava a desenhar o caminho. Pretendeu-se, com esta legislação, agravar todas as sanções previstas na lei e impor medidas concretas de identificação dos adeptos. É neste âmbito que no artigo 3 surgem aqueles que seriam os pontos mais polémicos: a defi­nição de uma zona com condições especiais para adeptos e o respetivo cartão de acesso.

 

O que é, afinal, o Cartão do Adepto?

De acordo com os documentos co­nhecidos, o Cartão do Adepto, cuja emissão e gestão estão a cargo da Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), foi criado pelo Governo “com vista à promoção da segurança e do combate ao racismo, à xenofo­bia e à intolerância nos espetáculos desportivos”. Com os propósitos ofi­ciais explanados, convém entender como é que se pretendem pôr estes desígnios em marcha.

No início da época em curso, fo­ram criadas nos estádios as deno­minadas ZCEAP. São “áreas especí­ficas do recinto desportivo” onde “é permitida a utilização de megafo­nes e outros instrumentos produ­tores de ruídos (…), bem como de bandeiras, faixas, tarjas e outros acessórios, de dimensão superior a um metro por um metro”. Quem quiser entrar nestas áreas, tem de mostrar o Cartão do Adepto, sujei­tando-se a ser identificado.

O processo burocrático para aquisição do documento começa numa plataforma online. É por essa via que deve ser requerido o Cartão do Adepto, mas nem todos os cida­dãos o podem fazer: está disponível somente para aqueles que têm ida­de igual ou superior a 16 anos. O ci­dadão que o queira fazer tem de dis­ponibilizar cerca de uma dezena de dados, desde o nome completo ao número de identificação fiscal e aos promotores desportivos (até três) que apoia. Com a validade de três anos, o custo inicial é de 20 euros.

 

 

A legislação e a realidade: a contestação vimaranense

Para João Lobo, dirigente da Associa­ção Portuguesa de Defesa do Adepto (APDA) e aficionado do Vitória Sport Clube, é fácil identificar o que há de errado com o novo instrumento. Enumera com facilidade os pontos negativos e não hesita em dizer que se trata de “um atentado às liberda­des individuais”. Reconhece como válida a luta a que o cartão oficial­mente se propõe, mas diz que “não é um cartão que vai alterar a natureza das pessoas” e que, “a nível social", é "tremendamente negativo” por “identificar pessoas que frequentam determinados setores” como “prova­velmente prevaricadores de atos vio­lentos”. Para além de tudo isto, diz que o cartão "prejudica diretamente as bancadas pelo excesso de buro­cracia que acarreta”.

Nélson Mauro, adepto do Morei­rense Futebol Clube, não é menos crítico e acredita que isto é só mais um degrau nas restrições impostas aos adeptos do clube de Moreira de Cónegos, limitando as suas for­mas de expressão nas bancadas. Trata-se, no fundo, de “mais do mesmo” e acrescenta que foi só o “xeque-mate”, depois de já terem sido privados do “direito a colocar as faixas, usar tambores, e apoiar o clube". O cónego acredita que “ser apenas sócio" deve ser suficiente para ver o Moreirense, sem necessi­dade de registos e identificações.

A luta não se faz só através do boicote. Para João Lobo, “a luta está a ser feita em várias frentes”. Há três cursos de ação principal. No plano legal, destaca-se, por exemplo, a intimação apresentada pela APDA no dia 4 de novembro de 2020 para declarar o documen­to ilegal. Consideram que o Car­tão do Adepto e a legislação que o concretiza “bloqueiam despropor­cionalmente direitos, liberdades e garantias fundamentais dos adep­tos” de uma forma “flagrantemente inconstitucional”; no início de 2021, o Tribunal Administrativo do Círcu­lo de Lisboa confirmou a legalidade da legislação. A isto junta-se o tra­balho feito junto dos partidos po­líticos. A Iniciativa Liberal tem sido um dos mais vocais opositores ao Cartão do Adepto e, no início de agosto, apresentou um projeto-lei na Assembleia da República que propõe a sua revogação. Para João Lobo “era importante ter o cartão congelado esta época na via judi­cial ou na via parlamentar”.

Aliado a tudo isto, e igualmente importante, especialmente para fa­zer a mensagem chegar ao adepto comum, destacam-se as ações de rua que têm como objetivo conse­guir 7500 assinaturas para levar o tema a discussão na Assembleia da República. Antes do arranque do campeonato, o exterior do Estádio D. Afonso Henriques foi preenchido com inúmeros cartazes de contes­tação. A campanha intensificou-se antes do confronto entre Vitória SC e Portimonense SC. Mais cartazes fo­ram colados nas portas e paredes; e panfletos que remetiam para a petição e para as linhas gerais do Cartão do Adepto foram distribuí­dos. Em Moreira de Cónegos não foi diferente. Antes do arranque do jogo que opôs Moreirense FC e SL Benfica, os axadrezados exibi­ram uma tarja onde se podia ler: “Diz não ao cartão do adepto”. Para Nélson Mauro, o caminho passa por “informar as pessoas sobre o tema”, o que se faz também “a es­palhar cartazes pela rua”.

Na pequena vila vimaranense, “a recetividade dos adeptos do clube tem sido muito boa” até porque “existem famílias que gostam de acompanhar o clube fora com miúdos na casa dos 15, 16 anos”. Com o Cartão do Adepto, es­tas zonas ficam bloqueadas a idades inferiores. A implementação da medi­da no verão, quando ninguém estava presente nas bancadas, fez com que muita gente ainda não se apercebesse das novidades e do respetivo impacto. Para Mauro, a contestação só não é maior porque “existe muita gente que não está devidamente informada”.

Apesar de estarem divididos na cor, os adeptos portugueses têm estado unidos numa luta comum contra uma medida que conside­ram abusiva e ineficaz. Tanto o vi­toriano João Lobo como o cónego Nélson Mauro relevam as próprias ações e valorizam os vizinhos. Para o primeiro, Guimarães deve liderar pelo exemplo por ter muita “repre­sentação” no panorama nacional e por despertar sempre muitas aten­ções. O segundo concorda e diz que “as gentes do Vitória são muito im­portantes nesta luta” e “uma gran­de força contra a implementação do Cartão do Adepto”. Olha para os adeptos do Moreirense, clube que apoia, como “uma pequena fatia do bolo” e reconhece que, "só todos juntos", é possível "chegar a algum lado”. No final da primeira jornada de uma maratona de 34, a luta – que se quer conjunta – parece estar só a começar.

 

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