E se um grande livro, como a Bíblia, nos falasse de desporto…
A grande literatura, quer no ocidente quer no oriente, não tem como estranha a realidade do jogo/desporto.

E, sempre navegando no nosso “caldo cultural”, a Sagrada Escritura Judaico-cristã, vulgarmente chamada de Bíblia, não é uma exceção.
Caso contrário, exaltando a dignidade da pessoa humana, apresentada como criada à imagem de Deus – “criou-os macho e fêmea” (Génesis 1, 27) – e afirmando que não era bom que o macho ficasse sozinho (cf. Génesis 2, 18), releva traços fundamentais da natureza humana que o jogo/desporto deve promover. Aqui se afirma a dimensão holista da humanidade e a sua igual dignidade (homem e mulher), que na completude concreta da sua existência se realiza como pessoa, em comunhão e solidariedade fraterna. Ora o jogo/desporto, como o já demonstramos na tradição ocidental, realiza estes vetores fundamentais do ser humano, ou de humanização da mulher e do homem. Aquilo que o Salmo 8, 6 proclama – “Quase um deus o fizeste: tu o coroas de glória e esplendor” –, lembra-nos que mais importante que o resultado (nunca desprezível no jogo/desporto) é humanizar-se o atleta e a comunhão fraterna que realiza na competição: jogar sempre, quer na vitória quer na derrota.
O Evangelho de Mateus fala da perfeição (cf. 5, 48) e o de Lucas da misericórdia (cf. 6, 36), e conjugando os dois Evangelhos percebemos que a perfeição brota da misericórdia, da generosidade paciente e bondosa com os inimigos (ou adversários no jogo/desporto), tornando o outro (mesmo que seja inimigo ou adversário) um companheiro na jornada de cada um dos que se encontram no palco da vida (mesmo que seja num recinto desportivo). Contudo, esta é uma atitude que tem de brotar do íntimo do ser humano, para que os seus atos exprimam a essência do amor feito encontro e atenção ao outro, cuidando e valorizando aquela ou aquele que se enfrenta na arena do existir e do ser. Ou como diz Mateus 6, 3-4: “Quanto a ti, ao dares esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita, a fim de que tua esmola fique no segredo; e teu Pai, que vê no segredo, te retribuirá”. A generosidade, mesmo a ternura, devem ser traços marcantes da nossa humanidade que no jogo/desporto se manifesta no conceito de fair play. O respeito, mais que a tolerância, pelo outro (mesmo que seja adversário e tenhamos o objetivo nobre de ganhar a competição) deve pautar a atitude e manifestar-se nos atos do atleta/executante do jogo/desporto. O mais forte manifesta a sua força quando se compadece, mesmo na vitória, do seu adversário, e na derrota, contra todas as previsões, aceita-a. Esta tem de ser a base do fair play para que não façamos do jogo/desporto um campo de batalha, incapaz de irmanar a humanidade na sua diversidade.
É nas Cartas de Paulo que encontramos o manancial abundante de desporto como analogia da fé cristã, que como o atleta se esforça e, com seriedade, procura cumprir as metas a que se propõe. Assim na Primeira Carta aos Coríntios 9, 24-27: “Não sabeis acaso que, no estádio, os corredores correm todos, mas um só recebe o prémio? Correi, pois, de modo a levá-lo. Todos os atletas se impõem uma ascese rigorosa, eles, por uma coroa perecível, mas nós, por uma coroa imperecível. Eu, portanto, corro assim: não vou às cegas; e o pugilismo, pratico-o assim: não dou golpes no vazio. Mas trato duramente o meu corpo e o mantenho submisso, a fim de que não ocorra que depois de ter proclamado a mensagem aos outros, eu mesmo venha a ser eliminado”. E este caminho é sempre o “domínio de si” (cf. Carta aos Gálatas, 5, 23) para darmos o melhor de nós, na procura da atingir a meta e o prémio merecido para o esforço praticado no respeito pelas regras: “rumo à meta, visando o prémio” (cf. Carta aos Filipenses 3, 14). E concluir, como um bom atleta, “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (cf. Segunda Carta a Timóteo 4, 7). Mas a proposta é, igualmente, holista, pois ninguém sozinho pode atingir seja o que for. É sempre com os outros, no jogo/desporto e na fé, que se atinge a meta. O respeito por si e pelos outros, não aceitando tudo o que possa desvirtuar a competição, ou magoar a dignidade do que comigo corre (no estádio ou na fé), é sempre a primeira condição para atingir a coroa imperecível da fé ou a coroa perecível do estádio.
Nós sabemos, nem pretendemos, definir um jogo/desporto cristão, mas numa perspetiva ocidental (e o traço do cristianismo é profundo na mundividência ocidental), o cristianismo oferece um modo de viver o jogo/desporto fundado sobre a ideia do ser humano e da sociedade. Aquilo que propomos é dar o melhor de si, seja qual seja a realidade em que nos inserimos e vivemos.