E se o jogo não serve para brincar, para que serve?
Foi com esta interrogação que terminei a crónica passada, salientado o lado lúdico como o mais aprazível e educativo do jogo/desporto, herdeiro do espírito olímpico da Hélade Antiga.

É famoso o lema da pedagogia e didática do meu tempo de menino – aprender brincando –, o que qualquer zoólogo nos pode demonstrar no comportamento dos animais que connosco habitam este planeta. E talvez, por isso mesmo, nos deixou o Professor Melo de Carvalho esta pérola: “A questão central do desporto (…) não é desportiva mas sim educativa”. Uma educação que promova os valores do são convívio, um ethos, capaz de promover comunhão e paz entre aqueles que praticam e usufruam do desporto como prática e como momento de cultura e fruição. Que se dê “em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes” (Lei de Bases da Atividade Física e Desportiva, nº 5/2007). Que promova, formando, nos valores da cidadania os desportistas e os adeptos, rejeitando toda a espécie de fobias e atitudes de corrupção moral e financeira, integrando e incluindo todos os homens e mulheres no jogo/desporto, seja qual seja a sua condição física e intelectual, social e religiosa, etc. Um desporto inclusivo que nos possa fazer concluir com A. Camus – “Foi no desporto que aprendi tudo o que sei sobre ética”.
Pulando do espírito agónico da Hélade dos Jogos Olímpicos para o espírito Moderno da Sociedade das Nações, a Carta Internacional da Educação física e do desporto da UNESCO, no seu preâmbulo, assinala: “a educação física e o desporto devem aspirar a promover as relações entre os povos e os indivíduos, e bem ainda, a competição desinteressada, a solidariedade e a fraternidade, o respeito e a compreensão mútuas e o reconhecimento da integridade e da dignidade das pessoas humanas”. E mais recentemente o espírito de fairplay, que não deve ser reduzido a um comportamento formal de boas práticas, mas tornar-se uma atitude pessoal e comunitária que se traduza em atos concretos de encontro e amizade. Não são meras regras (que não dispensa), mas no respeito pelo outro e no espírito desportivo, é um modo de pensar que rejeita toda aforma de violência e corrupção, e promove a amizade fraterna e a paz inclusiva e total. Talvez possamos traduzir por lealdade (cf. Código e Ética no Desporto do Conselho da Europa). É esta construção e partilha de valores que numa sociedade plural e multicultural somos desafiados a promover, na sua dimensão social e económica, e desportiva, mas de sobremaneira cultural. Impõe-se uma mudança de paradigma onde o ethos realize o antropos no lugar, no cosmos, em que se faz a história dos indivíduos e dos povos. E isto só acontecerá numa sociedade que pugne e proteja a função social e educativa do jogo/desporto. Enfim, o ideal de Pierre Coubertin nos Jogos Olímpicos da era Moderna na defesa de um conjunto de valores e princípios. Que este ethos, como ensinou Heidegger, se torne o modo de ser, a sua morada.
Contudo o século XX, na ascensão dos totalitarismos de esquerda e de direita, mostrou à saciedade como o jogo/desporto pode ser manietado para fins que não o espírito do ethos desportivo. Na obra de Villalobos Salas – Futebol e Fascismo – percebemos como pode ser usado para fins que depauperam a humanidade e fragilizam a relação entre os povos. Aqui o desporto, afirma Salas, “é um drama carregado de verdade, atualmente o mais parecido com a catarse dos templos de teatro de Atenas ou de Epidauro”. Brincar não deve ser entendido como uma simples brincadeira (algo sem importância), mas brincar/jogar/desporto é algo que constitui a humanidade como ser de fruição e cultura, nas performances que define nos seus convívios com outros indivíduos. Mas deixo esta outra interrogação: seremos só matéria, ou numa visão unitária da pessoa humana, seremos mais que células e cérebro? Na próxima crónica prometo abordar esta problemática...