Dos treinos pela noite dentro, nasce a superação de um campeão
O Vitória transformou-se na melhor equipa portuguesa de polo aquático. Os títulos e os laços criados entre jogadores compensam as várias deslocações a más horas sobre as quais se edifica o sucesso.

A pouco mais de um minuto do fim, Dumitru Sobetchi olhou para o cronómetro, sentiu-se “confiante” e desferiu um remate em trajetória ascendente que só parou no ângulo superior direito da baliza à guarda de Tiago Aparício. Estava feito o golo que selou o 11-8 na visita ao Fluvial, catapultando o Vitória para a dianteira da luta pelo título. No fim de semana posterior, a 22 de maio, os comandados de Vítor Macedo derrotaram o Aquático Pacense por 13-7 em Guimarães e sagraram-se bicampeões nacionais.
“Foi dos golos mais especiais que já marquei. Cada jogador sonha marcar o golo decisivo do campeonato, mas, naquele momento, com toda a adrenalina do jogo, há pouca margem para pensarmos sequer em alguma coisa”, reconhece o atleta de 28 anos, que, ao serviço do Vitória, foi ainda campeão em 2018/19, vencedor da Supertaça em 2019/20 e da Taça de Portugal no último domingo (11-7 sobre o Fluvial).
Mas esse tento não “serviria de nada” caso não houvesse à sua volta “uma equipa que também merece reconhecimento”, considera. Esse sucesso tem-se construído com treinos que nunca começam antes das 20h30, obrigando os jogadores residentes no Porto, como Dumitru, e na Póvoa de Varzim – Rui Ramos - a sucessivas viagens em horários tardios. “Estes jogadores têm muito amor à causa, pela falta de condições de treino e pelos horários a que acontecem”, adianta ao Jornal de Guimarães o treinador, Vítor Macedo. “Treinamos entre as 20h30 e as 23h00. Há atletas que chegam a casa à meia-noite e, no dia a seguir, têm de ir estudar ou trabalhar”.
Após crescer em Portimão, Dumitru mudou-se para o Porto para estudar engenharia mecânica. Trabalha hoje na área das energias renováveis, repartindo o tempo entre o escritório (a maior parte) e a visita às obras. A rigidez das deslocações e dos horários só se aligeirou com a pandemia: o teletrabalho, admite, retirou alguma “carga física e emocional” à sua profissão, removendo algumas das dificuldades, por vezes psicológicas, das viagens para Guimarães. “Não é que fosse uma grande viagem para o escritório, mas o simples facto de ter de acordar mais cedo e de lidar um bocado com o trânsito cansava. Entre todo o mal que a pandemia trouxe, o menor desgaste físico e psicológico foi um ponto positivo”, admite.
Ligado ao polo aquático vitoriano desde a sua criação, em 2003, Vítor Macedo foi capitão como jogador e treina a equipa sénior desde 2016/17, com uma interrupção em 2018/19 para assumir a seleção nacional sub-15. A experiência neste desporto amador ensinou-o a gerir dias em que a “predisposição” dos atletas para o treino é “menor” ou então a gerir atrasos, fruto de situações inesperadas. “Já aconteceu alguém apanhar um acidente e ficar preso no trânsito. Os jogadores chegavam cá às 21h15 ou às 21h20”, descreve.

Títulos e “qualidade humana” motivam
O técnico salienta, porém, que os atletas de fora de Guimarães estão “muito satisfeitos” no Vitória, face ao “projeto aliciante” que também lhes garante “algum rendimento” para juntarem ao da profissão. A par de Dumitru Sobetchi, há outros dois portuenses no plantel, o goleador Pedro Sousa e André Pereira.
Natural de Águas Santas (Maia), André começou a jogar polo aos 15 anos e passou por Salgueiros, CEAT (Trofa) e CDUP, antes de rumar ao Vitória em 2018, a convite do capitão João Costa. O desporto complementa o ofício de fisioterapeuta, desempenhado todos os dias numa clínica do Porto, das 08h00 às 17h00. “A partir das 19h30, começo-me a preparar para vir para aqui até às 22h30. Depois, é acabar o treino, chegar a casa às 23h45, comer qualquer coisa e ir dormir para já estar a pé para ir trabalhar às 07h00 do dia a seguir”, detalha o atleta, de 26 anos.
Ciente de que a fisioterapia é o “ganha-pão” e o polo aquático um “hobbie”, o jogador realça que as vitórias superam os contratempos logísticos. E a “qualidade humana e técnica” do plantel também. “Os atletas que já jogavam aqui sabem receber. Integraram-nos logo no grupo. Mostraram-nos o que é ser Vitória. O treinador é exigente e os seus treinos são bons. Vale a pena estar aqui”, observa.
A época mais difícil das três cumpridas em Guimarães acabou por ser mesmo a de 2019/20, já que, em março, a pandemia interrompeu o campeonato e desfez “muitos meses de treino”, recorda. Para Miguel Castro, jogador vimaranense de 23 anos que representa o Vitória há 11, mas estuda no Porto, a temporada mais difícil do projeto vencedor em curso foi a de 2018/19. “Vinha do Porto com o pessoal que trabalha lá. Nunca conseguíamos chegar a horas, porque havia pessoal que saía às 19h00, outro às 19h30”, recorda.

Tempo de “terapia”
Entretanto generalizado, o teletrabalho foi também um aliado para a gestão do tempo do estudante de engenharia informática: ocupa a manhã e um bocado da tarde com o estudo, dedica-se ao trabalho como freelancer no resto da tarde e treina à noite, reservando ainda o fim de semana para os jogos.
Perante essa rotina, Miguel Castro confessa haver dias que termina “cansado”, sem “cabeça para nada”, nem vontade de treinar. Mas o momento do regresso à água tem o condão de lhe mudar o humor. “Quando se chega aqui, com a equipa toda junta, acaba por ser um alívio e uma descompressão do dia de trabalho que tivemos”, reitera, frisando que o polo aquático é uma “referência” na sua vida, tendo-lhe dado as principais amizades.
Mais experiente, após passagens por Portinado, Salgueiros, CDUP e Fluvial, onde também foi campeão, Dumitru Sobetchi encara o polo aquático da mesma forma. As “dificuldades logísticas” de jogar no Vitória são ultrapassadas pelo “espírito de equipa”, pelo “companheirismo” e também pelos títulos, sendo um escape do quotidiano. “Para mim, o treino foi sempre um desanuviar do dia quando estava na faculdade ou agora que estou a trabalhar. É uma terapia no nosso dia a dia. Quando não posso vir ao treino, sinto falta dessa terapia e do convívio com os meus amigos”, reitera o internacional português.