Cristiana perguntava-se se tinha talento. Agora, guarda medalhas e um galardão
A vimaranense recebeu o Prémio de Desporto Adaptado na última Gala do Desporto. Natural de Airão Santa Maria, Cristiana Marques leva o nome de Guimarães – e da APCG – mais longe há quatro anos.

“As coisas começaram a acontecer” e Cristiana Marques foi colecionando medalhas ao longo dos últimos quatro anos. O boccia apareceu há cerca de dez – “não foi amor à primeira vista, mas quase”, pontua –, no entanto, para que as coisas “acontecessem”, como diz, foi preciso embarcar numa “montanha-russa”: “Senti que subi muito depressa, cheguei lá acima e quis manter-me. Depois, foi uma descida a pique”.
Há, quase como de costume, cinco atos nesta história: começa com uma jovem que descobre o boccia (introdução), a sua ascensão (encontra um clube e mostra talento), o clímax (um surpreendente terceiro lugar na primeira prova, após meros quatro meses de treino), mas depois a queda – a tal descida vertiginosa da montanha-russa em direção descendente – e, por fim, a resolução.
Este último capítulo aconteceu ainda este mês: Cristiana foi galardoada com o prémio de atleta do ano em desporto adaptado. A atleta da Associação de Paralisia Cerebral de Guimarães (APCG) viu coroado um percurso de quatro anos a levar longe o nome da associação e de Guimarães. “Quando subi ao palco pensava: ‘Será que mereço isto tudo?’”, evoca ao Jornal de Guimarães. Para perceber a dúvida da atleta de Airão Santa Maria diagnosticada com paralisia cerebral é preciso recuar a 2010.
“O boccia surgiu inesperadamente. Tinha acabado a escola em 2008 e não tinha ocupação, não tinha trabalho. Nas entrevistas de emprego, olhavam para a minha deficiência e recebia logo um não. Estava a entrar em depressão, sentia falta de qualquer coisa. Só saía para ir às terapias e numa sessão de fisioterapia (que fazia em Famalicão), um colega disse-me que conhecia alguém que estava a formar um clube e procurava atletas”, recorda.
A miúda tem talento
Decidiu experimentar. Começou a gostar. Quatro meses depois, entrava num campeonato regional. Foi “descontraída”: uma novata no meio de atletas experientes – “tubarões”, como lhes chama –, com “borboletas na barriga” e mentalizada que a probabilidade de “apanhar coças grandes” era grande. Só que “a coisa começou a correr bem”. Resultado final? Um terceiro lugar. “Comecei a questionar: será que foi sorte de principiante? Diziam-me que era um talento natural, e eu não pensava encaixar-me tão facilmente”. É aqui que Cristiana compara o seu percurso com o de uma “montanha-russa”: “Depois de ter subido tão rápido a descida foi muito a pique”.
“Algum tempo depois daquele resultado, de ter surpreendido, pensei que tinha muito para provar, de afirmar que aquilo não foi sorte e que tinha mesmo talento. Só que as coisas não correram tão bem. E não foram correndo: quanto mais os anos passavam as coisas ficavam mais difíceis. Comecei a duvidar e deixei-me afetar por isso. Se calhar, a miúda com talento não tinha assim tanto”. Tudo contribuía para a queda “a pique”: como já não andava na clínica de Famalicão, gerir viagens era complicado; sentia pressão nos treinos – que passaram a ser três por semana; e não via resultados.
Decidiu “pendurar os sonhos”. Afastou-se do boccia. Pensava que ia ser uma paragem de um ano – acabaram por ser quatro. Nos primeiros tempos nem via competições. Mas o hiato fez bem. Arranjou trabalho, juntou um carro à carta de condução, ganhou independência financeira e estabilizou.
Utente da APCG desde pequena, acorria também à associação para apoio psicólogo. Em 2018, com tudo encarreirado, começa a “sondar” a psicóloga. Queria voltar a praticar boccia e por lá praticava-se de forma lúdica, sem pressão. Era o que precisava. Até os horários ajudaram. “Na APCG”, disse-lhe o treinador Tiago Moura, “jogamos porque nos faz bem”. Encaixou como uma luva. “Afinal, eu adorava aquele desporto e sentia muito falta dele”, reitera.
Um hobby? Sim, “para trabalho já tenho o meu”
A miúda que em Famalicão se perguntava se daria para viver do boccia em Portugal reencontrou-se com a modalidade, mas desta vez como hobby. E ainda bem que foi assim. Cristiana sintetiza: “Queria que o boccia fosse um passatempo, para trabalho já tenho o meu. Não quero provar nada a ninguém, porque isso correu mal e não quero que corra outra vez”.
Não correu. Tanto é que já passaram quatro anos desde o primeiro treino na APCG e não se lembra de falhar um pódio. “Tinha uma medalha importante antes de 2018 e agora já perdi a conta”, achega. E o percurso não se fez só de vitórias. Em 2021, aos 30 anos, integra pela primeira vez um estágio da seleção. Os dias foram “puxadinhos”. Passou uma semana no Luso a treinar das 09h00 às 18h00. Teve oportunidade de jogar em equipa, algo que não acontece em Guimarães porque é necessário juntar duas classes: BC2 e BC1 (atletas “com a mesma patologia, mas mais limitados” que precisam de um assistente). Cristiana e o colega de treino Miguel são BC2.
A ambição passa por participar numa competição internacional para receber classificação e ser elegível para participar em Jogos Paralímpicos. Mas Cristiana não coloca “objetivos”. Tem “sonhos” e esse é um deles. Prefere que tudo aconteça com naturalidade – tal como tem acontecido. No fundo, o (pesado) galardão que levou para casa também não estava nos planos. Apareceu. O treinador, Tiago Moura, ligou-lhe e confirmou: venceria o Prémio de Desporto Adaptado, que contempla também uma bolsa de 2000 euros. A Cristiana que se perguntou se merecia realmente a ovação no Multiusos de Guimarães não era a mesma de há anos. “Sou eu mesma outra vez, não tenho de provar nada a ninguém, sinto isso. E os resultados vão aparecer com naturalidade, se tiverem de aparecer”.