Arbitragem. E se os “patinhos-feios” fugirem em “debandada”?
Há cada vez menos árbitros de futebol e a pandemia veio agudizar o problema. Nas camadas jovens da AF Braga há jogos adiados e equipas de arbitragem recrutadas em Viana do Castelo.

Chegam ao local do jogo hora e meia antes do horário marcado. Entram no balneário, equipam-se, fazem o aquecimento e entram em campo. Sentem a adrenalina; tal como todos os comuns mortais têm emoções, mas quando sobem ao relvado ficam desamparados. São a
única equipa sem adeptos e, à parti- da, todos estão contra eles. Exige-se que não errem, mas são provocados para errar. No fundo, poucos se importam que errem, desde que seja a seu favor. São os “patinhos-feios” do jogo, segundo Alain Freitas, ou o “elo mais fraco” do futebol nacional para Paulo Jorge Gonçalves.
A realidade é que, mesmo com um estigma negativo ao qual é impossível fugir, os árbitros são elementos essenciais ao desporto-rei: os juízes, como também lhes chamam. Uma designação que deveria ser de respeito e de autoridade. Na prática acontece o contrário: são insultados e questionados mesmo antes de começarem a tomar as decisões.
Um panorama que tem levado o setor da arbitragem a perder cada vez mais elementos. “Nos dois últimos anos a AF Braga perdeu sensivelmente duzentos árbitros”, dá conta Paulo Jorge Gonçalves, que foi árbitro durante catorze anos, tendo dedicado os últimos seis à presidência do Núcleo de Árbitros de Futebol do Ave (NAFA), cargo que deixou recentemente. Um panorama idêntico ao traçado por Alain Freitas, presidente do Núcleo de Árbitros de Futebol de Guimarães (NAFG): “O ano passado tivemos vinte candidatos no curso de árbitros que fizemos; no que está a decorrer este ano temos dez. Dentro da questão pandémica, a realidade é que temos metade dos candidatos”.
Os efeitos práticos deste flagelo já se começam a sentir no terreno e não apenas nos números. “Devido à falta de ativos na arbitragem bracarense alguns jogos da formação têm sido adiados e a AF Braga tem requisitado árbitros à AF Viana do Castelo. Temos até conhecimento que estão a atuar árbitros sem realizar provas físicas e, mais grave, sem exames médicos. Há árbitros a fazer quatro, cinco e seis jogos por fim-de-semana: uma loucura”, expõe o ex-líder do NAFA.
“Insatisfação, frustração e desmotivação: somos muito mal pagos”
O problema está à vista para Paulo Jorge Gonçalves com esta “debandada geral”. Na hora de apontar o que leva a que isto aconteça os motivos são vários e a pandemia não explica tudo. “É um facto que a pandemia teve um impacto negativo também neste setor, mas não é desculpa para tudo. A realidade é que já era notório e visível um sentimento de insatisfação, frustração e desmotivação por parte dos árbitros e núcleos de árbitros antes da pandemia”, exalta Paulo Jorge Gonçalves.
Alain Freitas, desde 2006 nos órgãos sociais do NAFG começa a desenrolar o novelo de problemas que estão na origem desta falta de árbitros. O primeiro é o mais óbvio, o estigma negativo a que os árbitros estão sujeitos, o desrespeito pelo setor e o descrédito geral na arbitragem. “Esta classe não é defendida, somos sempre os patinhos-feios”, diz Alain Freitas, admitindo que ser árbitro é sinónimo de ser “vaiado e agredi-do, verbalmente e até fisicamente”. Para além dessa questão, Paulo Jorge Gonçalves lamenta a falta de corporativismo na classe. “As razões estão também relacionadas com atitudes, decisões e posturas que o Conselho de Arbitragem ao longo dos últimos anos, e que têm causado desmotivação e saturação no seio da arbitragem”, aponta.
Há depois um vasto leque de outros fatores, porventura de menor nomeada, mas que todos somados ajudam a compor o quadro traçado. Desde logo o crescimento do número de clubes para a prática de futebol, que leva a que antes de pensar na arbitragem os jovens tentem primeiro ser jogadores. Noutro âmbito a exigência na arbitragem não tem retorno. “Temos treinos tanto ou mais exigentes do que os jogadores”, diz Alain Freitas. Paulo Gonçalves vai mais longe: “Na dedicação, compromisso, nos treinos obrigatórios, nas formações os
árbitros do distrital já quase são profissionais. Só não são bem pagos”.
Há novos árbitros a aparecer, mas poucos a ficar
Nos dois núcleos de árbitros de futebol existentes em Guimarães está filiada sensivelmente uma centena de árbitros, maioritariamente homens, com algumas mulheres a despontar. Os novos chegam “quase sempre desafiados por algum colega ou familiar”, na ótica do presidente do NAFG. Quando as pessoas entram e ganham o bichinho por este desafio depois raramente saem. A este nível a pandemia teve um efeito contrário. Os jovens até vão procurando os núcleos de árbitros, mas é difícil segurá-los lá. Ou seja, até há novos árbitros e gente disposta a tentar, mas poucos a criar raízes no setor.
Todos os anos formamos árbitros, há muitas pessoas que vêm par perceber apenas as leis do jogo, perceber as novas questões do VAR, mas fazem um ou dois jogos, são insultadas e agredidas e acabam por desistir”, explica. Com o longo interregno dos campeonatos distritais da formação, vários árbitros acabaram os respetivos cursos, mas, sem jogos para passar à prática, acabaram por desistir.
Ou seja, “o maior problema não é a captação, mas sim a retenção de árbitros”, opina Paulo Jorge Gonçalves, esbarrando novamente a temática na impressão geral a que facilmente se chega: “os árbitros continuam a ser mal pagos, injuriados e agredidos, muitos quase
que pagam para arbitrar”.
“É preciso mudar mentalidades"
A problemática está dissecada. É do senso comum e até o adepto mais fanático do futebol perceberá, numa análise mais fria, que o contexto da arbitragem não é positivo e nos últimos anos a tendência foi claramente de degradação no relacionamento entre árbitros e demais intervenientes no jogo, nomeadamente jogadores, treinadores, dirigentes, adeptos e todo o staff que rodeia o meio.
A solução até está encontrada, a frase sai dos dois líderes dos núcleos vimaranenses de árbitros, mas chega a ser quase uma utopia dada a sua complexidade: “É preciso mudar mentalidades”. Uma tarefa hercúlea, portanto. “É muito difícil mudar mentalidades e pedir à sociedade que mude padrões, mesmo que todos reconheçam na frieza das análises e quando distantes do meio futebolístico que as coisas estão mal”, expões Alain Freitas, concluindo que mudar mentalidades é precisa- mente o que é necessário.
Uma reflexão também feita por Paulo Jorge Gonçalves. “Temos de alterar mentalidades e a cultura desportiva. Há muitas pessoas a atuar de forma maldosa na atribuição de erros à arbitragem: não há mal em criticar os árbitros, não se pode é criticar o homem ou mulher que são árbitros. Há árbitros mais competente do que outros, como há jogadores, treinadores, dirigentes, médicos, jornalistas. Está na hora de dar o salto cultural e respeitar os árbitros da forma que merecem”, remata.
Apesar da preponderância dos árbitros no jogo que a todos apaixona, os regulamentos dizem que um jogo de futebol tem de se realizar caso não haja equipa de arbitragem, sendo os capitães e até possivelmente algum adepto a assumir o papel que normalmente pertence ao trio de arbitragem. “Às vezes, em tom de brincadeira, até dizemos que era isso que devia acontecer, alguns jogadores, treinadores e dirigentes, viessem para o nossos lugar, para perceber o que é estar do lado de cá e perceberem como as coisas acontecem. Já convidamos várias equipas a vir a um treino e a arbitrar um treino”, remata Alain Freitas. Quem sabe. A solução até pode estar aí para que as mentalidades comecem a mudar.