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A aposta do futebol

Se o leitor acompanha a Liga Bwin, já deve ter reparado que a Liga e onze clubes vestem-se de casas de apostas. Importa saber: o futebol deve legitimar estas práticas?

17 agosto 2021 > 00:00

Inter e Pirelli, Arsenal e O2, Boca Juniors e Quilmes, Manchester United e Vodafone. Para um adepto de futebol, estas associações são quase imediatas. A combinação entre estes clubes e o respetivo patrocinador principal, que durante mais ou menos anos – e em momentos mais ou menos importantes – apareceu em destaque na parte frontal das camisolas, tornou-se icónica: as camisolas transformaram-se em objetos de culto para os colecionadores e, não raras vezes, em peças de museu.

O feito d'Os Invencíveis de Arsène Wenger, uma das equipas mais lendárias da história da Premier League, vai estar sempre ligado à camisola vermelha com mangas brancas e o logótipo da O2, empresa inglesa de telecomunicações.

Está mais ou menos estabelecido que foram os uruguaios do Peñarol, nos tempos idos de 1950, que inauguraram a prática comercial de vender o espaço frontal das camisolas. No entanto, não a alavancaram e, no mundo do futebol de antigamente, muito se torceu o nariz a esta conduta. A prática só se tornou comum na década de 1980, mas sem consenso. Numa fase inicial, em Inglaterra, alguns canais de televisão recusaram-se até a transmitir os resumos das equipas que usavam camisolas patrocinadas.

O Eintracht Braunschweig foi pioneiro nos grandes palcos europeus. No início dos anos de 1970, quis vender o espaço frontal da camisola a uma marca de bebidas, mas o pedido foi recusado. A solução: substituir o emblema do clube pelo logótipo da Jägermeister, empresa patrocinadora.

Nos dias que correm, o mais estranho é encontrar uma camisola sem publicidade. O espaço frontal das camisolas de futebol é o painel publicitário mais cobiçado do futebol e pode render muito dinheiro – a título de exemplo, o acordo entre a Fly Emirates e o Real Madrid rende 70 milhões de euros por ano aos espanhóis. O futebol moderno obrigou os clubes a procurar novas fontes de receitas e a não desperdiçar nenhuma oportunidade. O Barcelona, que inicialmente se recusou a vender qualquer centímetro da camisola para publicidade e mais tarde o cedeu apenas à UNICEF numa campanha solidária, tem agora uma camisola que rende, entre a publicidade principal da Rakuten e a secundária da Beko, 180 milhões de euros por ano (valores referentes à era Messi).

Como em todos os aspetos do mundo de negócios futebolísticos, os critérios ficam menos apertados à medida que aumentam os zeros antes da vírgula. É uma relação de causalidade facilmente comprovada. Nos últimos anos, as empresas de apostas começaram a imiscuir-se no desporto e começaram a aparecer com destaque em muitas camisolas de futebol, especialmente em Inglaterra. Quando, em 2018, uma investigação do Sunday Times revelou que alguns clubes, um dos quais o primodivisionário Newcastle, usavam as camisolas de equipas da formação para publicitar empresas de apostas, o debate ficou mais intenso. Num país cuja população tem graves e comprovados problemas de jogo, discute-se até que ponto é ético ser o futebol, matéria sempre mais emocional do que racional, a legitimar as apostas. A relação que os adeptos estabelecem com as marcas que patrocinam os seus clubes está bem documentada.

No entanto, a ligação entre empresas de apostas e o futebol inglês é muito mais profunda do que o logótipo visível nas camisolas de muitos clubes. As empresas de apostas parecem ser omnipresentes, quase como se fossem inseparáveis e como se não fosse possível desfrutar do jogo sem sermos nós próprios a jogar e a apostar. Uma sensação que gradualmente se está a estender a todo o jogo, dentro e fora de fronteiras britânicas. Quando, em 2020, estive em Manchester para ver o dérbi da cidade em Old Trafford, fiquei intrigada com a existência de uma banca, pertencente a uma casa de apostas, no interior do estádio, ao lado do bar. Curiosamente, quando me dirigia para a bancada, os ecrãs dessa casa de apostas, parceira do Manchester United, davam como provável um golo de Bruno Fernandes; o português magnífico acabou por “apenas” assistir Anthony Martial para o primeiro da partida (que acabou com um triunfo caseiro por 2-0; McTominay saltou do banco para fechar o marcador com um disparo a 35 metros da baliza).

A relação entre o futebol e as empresas de apostas começa a ser um fenómeno cada vez mais evidente também no futebol português. A partir desta época, e até 2025/26, o primeiro escalão de futebol masculino vai chamar-se Liga Bwin. O acordo celebrado entre a Liga e a casa de apostas é milionário e o mais expressivo de sempre. É o cartão-de-visitas para um campeonato em que as casas de apostas dominam. Dos 18 clubes primodivisionários, 11 têm como patrocinador principal uma casa de apostas. Vitória SC e Moreirense FC, a par do Famalicão e Boavista, contam com o logótipo da empresa Placard em destaque na camisola; Sporting, Braga e Marítimo são da equipa Betano; Estoril, Paços de Ferreira e Santa Clara estão associados à empresa Sol Verde; e nas camisolas do Belenenses SAD está a Betway. Há ainda a registar a associação – com o logótipo visível em menor dimensão na manga ou em outra zona da camisola – de mais cinco clubes com empresas de apostas. No total, 16 clubes (de 18) da Liga Bwin dão visibilidade a empresas de apostas.

Quase todas as equipas da primeira divisão portuguesa assinaram com empresas de apostas. O confronto entre Porto e Portimonense será o único sem referências a casas de apostas.

Na Turquia, em Itália e em Espanha, a proibição da publicidade de empresas de apostas a clubes de futebol já é uma realidade. O governo inglês estuda fazê-lo a partir de 2023. E Portugal deve decidir o que quer do futuro. O futebol tem a obrigação de estudar as implicações, especialmente na comunidade jovem – e mais vulnerável –, de se envolver de forma tão íntima com as empresas de apostas para depois tomar uma decisão informada e séria para o futuro. Deve o espaço comercial mais importante da camisola de futebol – tanto da perspetiva comercial como histórica – legitimar e incentivar as apostas? No futebol moderno em tudo que tudo é vendável – sejam centímetros na camisola, nome de torneios e competições ou o nome dos estádios e das bancadas –, convém não esquecer que os clubes devem, antes de tudo, cumprir o papel social de zelar pelo bem-estar da comunidade. Afinal, sem a comunidade nenhum clube existia e nenhum clube se mantém.

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